ATUALIDADES SOBRE O MANDADO DE SEGURANÇA
I – Introdução. II – Breve histórico do mandado de segurança. III – Os pressupostos do mandado de segurança. IV – Atualidades do mandado de segurança. IV.1. – Atos de Autoridade, Impetração Ampla e Impetração Restrita. IV.2. – As relações jurídicas no mandado de segurança e a impetração por decorrência. IV.3. – Mandado de Segurança Difuso. V – Conclusão
I – Introdução
Se a história revela a importância dos institutos jurídicos, o mandado de segurança pode ser tido como a grande garantia do direito brasileiro, na sua utilidade, na sua força e na exclusividade de tê-lo aqui, em terras e leis brasileiras, previsto originalmente desde 1934 e mantido atualíssimo até os dias de hoje.
Neste artigo proponho retomar brevemente as razões da criação desta garantia e os pressupostos do seu funcionamento, para então identificar e comentar algumas atualidades que mais interessam, a partir da sua regência atual.
Essencialmente, farei quatro propostas de interpretação do mandado de segurança em pontos relevantes de sua atualidade: sobre (i) a identificação dos seus pressupostos, três de conhecimento e um de concessão da segurança, (ii) sobre a identificação das atribuições do Poder Público, a autoridade coatora e as duas modalidades de impetração que denomino de ampla e restrita (iii) sobre a legitimidade e uma espécie de interpretação por decorrência e, por fim, (iv) sobre a possibilidade de impetração do mandado de segurança difuso.
II – Breve histórico do mandado de segurança
O berço constitucional do mandado de segurança é a Constituição de 1934[1]. O remédio veio para assegurar a proteção do indivíduo contra violações dos direitos que não vinham protegidos pelo habeas corpus. Ainda com alguma timidez, o constituinte fez o mandado de segurança com o mesmo procedimento do seu remédio antecessor e positivou o entendimento de que uma garantia tão forte serviria apenas para violações a direitos certos e incontestáveis.
Ocorreu que o habeas corpus não nasceu no Brasil restrito à sua vocação clássica e comparada em outros países. Na Constituição Republicana de 1891 o habeas corpus veio para proteger o indivíduo contra atos de violação e abuso do poder estatal. Quaisquer atos, verifica-se no texto, e não somente os atos ofensivos da liberdade de ir e vir e permanecer. Seguiram-se uma série de discussões sobre a amplitude do habeas corpus[2]até o surgimento do mandado de segurança, que de certa forma pacificou a polêmica e deixando a liberdade de locomoção para o habeas corpus e todos os demais direitos para o mandado de segurança.
O texto foi sofrendo pequenas modificações e foi mantido em todos os textos constitucionais até o de 1988, com exceção da Constituição de 1937. Assim expliquei a ausência do mandado de segurança nesta carta constitucional: “O Estado Novo de 1937 e a sua Carta Constitucional, propositalmente omissa em relação ao mandado de segurança, mostram a força desse remédio. O mandado de segurança revelou sua superioridade e sua importância mesmo quando não mais existira no nível constitucional, porque se mostrou ameaçador para a constituição de um Estado autoritário”[3].
Em 1946 o mandado de segurança retornou à sede constitucional, já com a expressão direito líquido e certo no lugar da expressão certo e incontestável de 1934 e assim foi mantido na Constituição de 1967, que ainda acrescentou a expressão individual ao direito protegido pela garantia. O mandado de segurança já era tido como protetor de direitos individuais apenas, mas o texto de 1967 reforçou positivamente esta sua determinação.
Foi apenas em 1988 que este termo limitador individual saiu do texto constitucional, ficando apena a previsão de que o mandado de segurança protegeria violações de atos do Poder Público a direito líquido e certo (de qualquer titularidade, portanto)[4]. Além disso, surgiu em 1988 o mandado de segurança coletivo, inspirado em uma Constituição que prestigia os direitos de associação e a proteção de interesses transindividuais[5].
A Lei n. 12016/2009 refletiu os pressupostos constitucionais e regulamentou o mandado de segurança, reproduzindo boa parte da lei que revogou, a n. 1533/1951. O mandado de segurança será conhecido e a segurança será concedida (conceder-se-á mandado de segurança), quando estiverem presentes os seguintes pressupostos:
- Ato;
- Ato de autoridade;
- Direito
iii.1. individual e coletivo[6];
iii.2. líquido;
iii.3. certo;
iii.4. não amparado por habeas corpus ou habeas data;
- Ilegalidade ou abuso de poder.
III – Os pressupostos do mandado de segurança
Esta é a base de toda a divisão metodológica proposta no meu Mandado de Segurança – Teoria e Prática. Assim expliquei a divisão[7]:
Para os pressupostos de conhecimento da segurança: “São pressupostos de conhecimento para a concessão ou denegação da segurança ou, de maneira simplificada, são pressupostos de conhecimento da segurança: ato; ato de autoridade; direito líquido e certo; direito individual ou coletivo, não amparado por habeas corpus ou habeas data.
Estão posicionados pela lei como verdadeiros requisitos, como condições precedentes para que o mandado de segurança seja conhecido e, portanto, resolvido com mérito. São os pressupostos de seu conhecimento que permitem o julgamento sobre a concessão ou não da segurança. Não presentes esses mesmos pressupostos, o mandado de segurança devera sofrer extinção sem resolução de mérito”.
Para o pressuposto de concessão da segurança: “Há um pressuposto para a concessão da segurança que é a ilegalidade ou o abuso de poder. Será melhor tratar ilegalidade ou abuso de poder como um pressuposto único porque são alternativos e porque estando presente um deles ou os dois em conjunto já se encerra a condição para a concessão da segurança.
A ilegalidade ou o abuso de poder tem de estar presente e tem de qualificar e caracterizar o ato ou a omissão contra que se volta a ação de mandado de segurança. Sendo ilegal o ato ou a omissão ou tendo o ato sido praticado com abuso de poder, ou sendo a omissão dele decorrente, a segurança terá de ser concedida para corrigir e remediar a ilegalidade ou o abuso de poder.
Há um verdadeiro pressuposto para a procedência ou não da ação de mandado de segurança, que é a condição própria para o afastamento de um ato ou para a prática de um ato que corrija uma ação ilegal e abusiva ou uma omissão ilegal e abusiva.
O mandado de segurança é uma ação cujo pedido sempre será pela concessão da segurança qualificada pela ordem de ação ou de interrupção de ação para uma autoridade.
A conclusão é binária, sendo certo que a existir ilegalidade ou abuso a segurança tem de ser concedida e há, portanto, procedência do pedido com resolução de mérito. A inexistir ilegalidade ou abuso, a segurança deve ser denegada e, portanto, há improcedência do pedido com resolução de mérito”.
Os pressupostos do mandado de segurança lhe dão sentido e alcance. O estudo, a compreensão e o funcionamento do mandado de segurança decorrem essencialmente do que está como pressuposto no seu conceito e na sua criação.
IV – Atualidades do mandado de segurança
IV.1. – Atos de Autoridade, Impetração Ampla e Impetração Restrita
As ilegalidades e abusos vindos de atos do Poder Público são o objeto do mandado de segurança. Se assim é, o seu manejo eficaz passa pela compreensão de quais são estes atos e, de acordo com a Lei do Mandado de Segurança (Lei n. 12.016/2009), em que casos cabe a impetração ampla (contra qualquer ato) e a impetração restrita (só contra alguns atos). O ato de autoridade é um pressuposto de conhecimento do mandado de segurança e, a depender de qual a autoridade, poderá o impetrante saber se sua impetração é cabível e se é ampla ou restrita. Este é o exercício de interpretação e a classificação que proponho no meu Mandado de Segurança – Teoria e Prática[8].
Agente público é a expressão de gênero, da qual é espécie o servidor público, que é uma categoria de autoridade. A Lei do Mandado de Segurança traz ainda as expressões administradores de entidades autárquicas e dirigentes de pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do poder público, expressões todas compreendidas na definição autoridade pública. E esta é a mais precisa nomenclatura para se qualificar o praticante ou ordenador do ato que é objeto da impetração do mandado de segurança: autoridade pública.
As pessoas que estão no exercício de atribuições do Poder Público são autoridades públicas e podem sofrer impetração ao cometerem ilegalidades ou abuso nas suas funções. Além destas, há uma real autoridade equiparada por força de lei que envolve os representantes e os órgãos de Partidos Políticos. A lei faz uma qualificação especial destas figuras por equiparação e não por natureza, uma vez que os Partidos Políticos são organizações civis, de criação privada.
Podem então ser assim classificadas as autoridades públicas do mandado de segurança: (i) autoridade, que se divide em (i.i) servidores públicos e (i.ii) outros agentes públicos no exercício de atribuições do Poder Público, que poderão ser (i.ii.i) administradores de entidades autárquicas, (i.ii.ii) dirigentes de pessoas jurídicas e (i.ii.iii) pessoas naturais; e (ii) autoridade equiparada, assim entendidos os órgãos e representantes dos Partidos Políticos.
Desta classificação decorre outra grande divisão entre os atos do Poder Público, também muito útil para a definição do objeto do mandado de segurança. O exercício das atribuições do Poder Público pode ser então direto (por atos praticados pelos servidores públicos) ou indireto (por atos praticados por agentes em exercício específico). Aí se alocam as autarquias e as fundações públicas, que atuam por extensão do Poder Público, as empresas públicas, privadas e de economia mista, que atuam por concessão, permissão e autorização do Estado ou que exercem atribuições de exercício livre, como é o caso dos hospitais e das universidades que estão sujeitos a licenciamento e controle, mas que têm a liberdade de organizar suas atividades por previsão constitucional.
Todos os atos dos servidores públicos, enquanto tais, serão passíveis de impetração. Já as autoridades caracterizadas como “outros agentes públicos no exercício das funções do Poder Público”, por definição legal, só produzirão atos sujeitos ao mandado de segurança se estes atos configurarem atribuições do Poder Público. Estão excluídos da impetração, para estas autoridades, portanto, os atos chamados de gestão comercial, expressão que, na sua acepção moderna, significa o conceito amplo de atividade empresarial – no que estiver desvinculada, por exclusão, da atividade no exercício da atribuição do Poder Público.
Surgem então estes dois tipos de impetração: a impetração ampla (contra quaisquer atos da autoridade) e a impetração restrita (contra atos da autoridade, no exercício das atribuições do Poder Público). A classificação a que se pode chegar, com base neste critério de abrangência da impetração é, portanto:
- Atos de autoridade no exercício direto das atribuições do Poder Público: impetração ampla para quaisquer atos ilegais ou abusivos;
- Atos de autoridade de pessoa jurídica de direito público no exercício indireto das atribuições do Poder Público por extensão: impetração ampla para quaisquer atos ilegais ou abusivos;
- Atos de autoridade de pessoa jurídica de direito privado no exercício indireto das atribuições do Poder Público por extensão: impetração restrita aos atos ilegais ou abusivos praticados no contexto de exercício das atribuições do Poder Público;
- Atos de autoridade de pessoa física ou jurídica de direito privado no exercício indireto das atribuições do Poder Público por delegação, concessão, permissão ou exercício livre: impetração restrita aos atos ilegais ou abusivos praticados no contexto de exercício das atribuições do Poder Público.
- Atos de dirigentes e órgãos de Partidos Políticos: impetração restrita por equiparação da lei.
Definidas as impetrações amplas e restritas, compreendida a classificação de autoridades públicas admitidas pela lei para o atendimento deste pressuposto do mandado de segurança (ato de autoridade), caberá outro desafio ao intérprete: identificar quais são as atribuições do Poder Público.
A doutrina tem ensaiado, ainda timidamente, uma sistematização destas atribuições, mas fato é que dificilmente se encontra nos livros ou nos julgados sobre o tema uma identificação objetiva e exaustiva que possa dar uma indicação real ao intérprete sobre quais são as atribuições do Estado (Poder Público).
Uma explicação possível para esta dificuldade de encontrar objetivamente as atribuições do Poder Público é de que elas estão espalhadas pelo texto da Constituição Federal que não é, por essência e por forma, um texto técnico ou tecnicamente sistematizado. As atribuições do Poder Público, de fundamento imperioso para a identificação da autoridade pública de exercício indireto, são decorrência imediata da constituição do Estado brasileiro.
É preciso assim, passar pelo texto da Constituição Federal, artigo por artigo, com a leitura criteriosa do que faz a lei maior para atribuir ao Poder Público determinado objetivo, tarefa específica, funções, fundamentos, deveres, direitos e todas as atribuições que o caracterizam.
É este percurso pelo texto constitucional que faço na obra referida (Mandado de Segurança – Teoria e Prática, item 4.1.2.2.1, pg. 159). O fundamento das atribuições do Poder Público é a Constituição Federal. A legislação inferior traz inúmeras atribuições, as especifica, lhes dá os contornos e os termos de seu exercício, direto e indireto, pelo Estado. Mas não inova na estrutura fundamental do poder estatal. Não atribui o que não é autorizado pela Constituição Federal. Não pode contrariá-la e deve obedecer e dar regulamentação aos seus fundamentos e preceitos. O estudo destes fundamentos constitucionais é a base para toda a compreensão sobre as atribuições do Poder Público e, portanto, para a impetração correta do mandado de segurança.
IV.2. – As relações jurídicas no mandado de segurança e a impetração por decorrência
Desde a lei de n. 1533/51 o mandado de segurança pode ser impetrado por quem não é originalmente o titular do direito ofendido pelo ato coator. A titularidade desta impetração se dá por decorrência e não por relação originária.
O artigo 3º da lei de 1951 foi repetido na lei n. 12016/2009, com alguns requisitos que o tornam de difícil aplicação e, talvez por isso, esta impetração de previsão já antiga não seja muito praticada.
Na obra que já referi[9], identifico três relações jurídicas que estão presentes no evento de uma impetração e que ajudam a entender o dispositivo da impetração por decorrência. São elas:
- Relação de direito processual (legitimidade processual para a impetração);
- Relação de direito material (titularidade do direito violado pelo ato coator);
- Relação de garantia (titularidade da garantia constitucional).
As relações i e ii são comuns a todas as ações. A relação iii é específica das garantias constitucionais, uma vez que além do direito material o impetrante enquadrado nos pressupostos do mandado de segurança tem a relação de garantia, que é uma relação independente e nem sempre convergente com as demais.
Veja-se o caso da impetração coletiva: a associação figura na relação de legitimidade processual e na relação de garantia, mas não figura na relação de direito material de seus associados. Impetra por direito que materialmente se destina a terceiros que não ela, legitimada para a ação do mandado de segurança.
O impetrante individual pode assim ter seu direito decorrente de direito, em condições idênticas, de terceiro (art. 3º, Lei n. 12.016/2009). É que o titular-inerte figura, ele, na relação de direito material, assim como nas relações de garantia e de direito processual. E o titular por decorrência passa a assumir por substituição a relação de legitimidade processual e a relação de garantia, sem ser o titular da relação originária de direito material.
Os exemplos que envolvem propriedade ajudam a entender o mecanismo: o comprador de imóvel por instrumento particular tem interesse na garantia contra a desapropriação feita com abuso antes de outorgada e averbada a escritura para a transferência da propriedade. A relação de direito material, sobre o direito de não ser desapropriado por ato de abuso, é de titularidade do proprietário atual (vendedor) e não ainda do proprietário futuro (comprador). Mas a inércia do primeiro faz recair as consequências do ato de abuso sobre o segundo. A situação tem a proteção da lei da garantia do mandado de segurança, porque o comprador, embora não proprietário, pode notificar o titular originário do direito para que impetre o mandado de segurança. Persistindo a inércia, impetra, ele, o mandado de segurança. A titularidade da garantia por substituição e a legitimidade processual decorrem deste procedimento, da notificação que demonstra a necessidade de impetração. O impetrante, substituto do titular originário, passa a defender direito seu, que é evitar as consequências da falta de impetração pelo titular originário para o afastamento do ato coator.
No mesmo exemplo, deve-se dar ao futuro proprietário a possibilidade de afastar o abuso que não é mais remediado pelo proprietário na situação que coloca em risco o imóvel. O titular do direito originário pode não ter mais o interesse econômico que justifique o seu movimento pela impetração. O titular por decorrência, como o chama a lógica do art. 3º da lei do mandado de segurança, tem todo o interesse na impetração e não pode ser refém da inércia de terceiro. Rompe-se com a legitimidade de ação clássica em nome da efetividade da garantia.
Mexer nestas estruturas de relação intimida todo legislador e faz naturalmente com que a redação saia menos compreensível e com requisitos que não se justificam. A lei deu ao titular por decorrência a garantia que era do titular originário, mas deveria ter imposto o único requisito justificável que é a configuração da inércia na impetração. E o legislador de 1951 fez bem ao exigir o critério do razoável para a configuração do tempo de inércia da impetração.
O que faz inerte o titular originário é a não impetração a tempo de remediar a violação do direito. Daí porque é incompreensível a manutenção da exigência de notificação judicial pela lei de 2009 e a inovação com a fixação deste prazo aleatório de 30 (trinta) dias, que o titular por decorrência deve esperar antes de impetrar o mandado de segurança. O prazo de trinta dias pode ser muito ou pouco e pode servir ou não para a demonstração da falta de ação.
Volta-se ao exemplo da propriedade. Se da desapropriação resultará a demolição do imóvel e o ato se deve cumprir em dez dias, exigir que o titular por decorrência espere o prazo de trinta dias mais o de tramitação judicial de sua notificação é o mesmo que suprimir o seu direito de garantia.
Tem-se então que tomar a formalidade da notificação judicial e o prazo de trinta dias como referências da lei apenas, para minimizar a chance de duplicidade de impetrações e para dar ao titular a ciência de que mandado de segurança será impetrado para proteger direito que decorre das consequências que traz a falta de ação para o direito originário. Caberá ao juiz verificar se a urgência justifica, e em que medida o faz, a flexibilização destes critérios. Em casos de urgência, deveria bastar a notificação eficaz, por qualquer meio, e o prazo seria o tempo limite para a impetração antes de ato que tenha consequências irreversíveis.
Talvez com esta proposta de interpretação sobre os requisitos da lei, o mandado de segurança por decorrência passe a ser mais utilizado, na proporção do número de situações em que a garantia servirá a terceiros reféns da inércia dos titulares originários do direito ofendido. Amplia-se assim esta tão poderosa garantia constitucional dando-se aos direitos fundamentais o método de interpretação que melhor se coaduna com a nossa lei maior.
IV.3. – Mandado de Segurança Difuso
A proposta de um mandado de segurança difuso serve para reflexão e eventual adoção da garantia com esta abrangência por aceitação da nossa doutrina e dos tribunais. O mandado de segurança difuso ainda é raramente utilizado e poucas vezes compreendido. Isso se dá, a meu ver, por certa sedimentação de uma forte tradição, desde a sua origem, do mandado de segurança como garantia essencialmente de uso individual.
A expressão individual veio no texto constitucional que antecedeu o atual (1967). A lei de 1951 (n. 1533), que regulou o mandado de segurança por mais de cinquenta anos, não trazia o termo individual no seu artigo 1º mas referia que o mandado de segurança se daria sempre que (…) alguém sofrer violação a seu direito.
Da Constituição de 1988 e da lei de 2009, atual regência do mandado de segurança, também se poderia dizer que a literalidade das disposições iniciais remete à ideia de que o mandado de segurança é individual. São as expressões: sempre que (…) qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação a seu direito (Lei n. 12.016/2009) e para proteger direito líquido e certo (Constituição de 1988).
Pode-se dizer ao falar em “direito” líquido e certo, a Constituição Federal excluiu os interesses difusos ou os direitos difusos eque ao falar em pessoa física ou jurídica a Lei de 2009 quis que a impetração fosse feita por um titular determinado e não por um substituto de titulares indetermináveis, como seria em uma impetração difusa.
Ainda, em 1988 surgiu o mandado de segurança coletivo. E então se iniciou uma forte discussão sobre a possibilidade das associações ou entidades de classe ou os sindicatos ou os partidos políticos impetrarem mandado de segurança para defenderem interesses de uma coletividade (com pertinência de matéria para o objeto da associação) ou interesses que transcendessem esta coletividade e passassem a alcançar um grupo indeterminável de pessoas (direitos difusos, portanto).
A discussão é salutar e podemos resumir três posições: (i) o mandado de segurança coletivo não pode ser impetrado para proteger interesses difusos por contrariar a vocação jurídica desta garantia; (ii) o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado para proteger interesses difusos, desde que a matéria esteja prevista nos estatutos e atos de criação e existência da entidade legitimada e (iii) os partidos políticos, que não estariam limitados para impetrar o mandado de segurança dentro do seu objeto estatutário, poderiam impetrá-lo para proteger direitos difusos.
Porém não é nesta variação que quero manter o foco para esta proposta de interpretação. Proponho a existência de um mandado de segurança difuso, a partir de dois elementos, de fácil entendimento, na regência atual do mandado de segurança:
1º elemento: a Constituição de 1988 não traz a restrição do termo individual;
2º elemento: o §3º do art. 1º da Lei n. 12.016/2009 diz: Quando o direito ameaçado ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá requerer o mandado de segurança.
Diante destas disposições, não identifico uma limitação para o uso do mandado de segurança, por qualquer entre os vários legitimados, ainda que se trate de direito de titularidade indeterminável. Assim fiz esta proposta de interpretação no Mandado de Segurança – Teoria e Prática:
“O direito que cabe a várias pessoas pode ser individual plúrimo – quando as pessoas titulares forem determinadas e não houver coletividade com relação jurídica; pode ser individual plúrimo homogêneo – quando as pessoas titulares forem determinadas e houver origem comum e relação com a pessoa impetrante; pode ser coletivo – quando as pessoas forem determinadas, houver relação jurídica entre elas e a pessoa impetrante e os direitos forem indivisíveis; pode ser difuso, quando houver titularidade indeterminada, o direito for indivisível e houver relação de circunstâncias de fato entre os titulares[10].
Estes direitos são todos protegidos pelo mandado de segurança, seja por força da disposição expressa da lei seja por força da interpretação que decorre da atribuição de legitimidade para impetração por substituição processual que consta da lei. A impetração por substituição processual é admitida na lei para os direitos individuais homogêneos e coletivos (mandado de segurança coletivo), para os direitos individuais plúrimos (mandado de segurança individual por substituição) e para os direitos difusos (mandado de segurança difuso).
O Supremo Tribunal Federal chegou a editar a súmula n. 101[11] para fixar o entendimento de que o mandado de segurança não substitui a ação popular. A todo sentir a súmula é orientada justamente para distinguir o mandado de segurança da garantia mais específica de proteção dos direitos difusos que há no art. 5º, inciso LXXIII[12] da Constituição Federal.
Para ato de destinatários difusos, o ato difuso, a Constituição Federal prevê este remédio específico que os abrange, não obstante com objeto circunscrito à pretensão de proteção e preservação do patrimônio público, da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural[13]. Assim, ao que parece o Supremo Tribunal Federal quis dizer, com a súmula n. 101, que o mandado de segurança não se presta para afastar ou provocar atos com destinatários difusos ou relacionados a direitos difusos.
A resistência a se admitir o mandado de segurança difuso pode ser que venha da tradição do mandado de segurança enquanto garantia individual e da sua divisão literal entre individual e coletivo, na ordem constitucional vigente. Os direitos difusos são de geração mais recente[14], com origem e processo ainda jovem de assentamento de teorias. Não há porque, contudo, tirar do mandado de segurança a sua vocação constitucional de garantia ampla, eficaz e contundente, inclusive como remédio de violações difusas. É preciso dar-lhe o tamanho que tem e a dimensão que adquiriu em mais de setenta anos de aplicação, ainda que interrupta em poucos e tristes momentos de totalitarismo e falta de controle sobre o abuso do poder estatal. Espera-se que o mandado de segurança difuso sirva, com mais e mais utilização, ao que é o fastígio de sua existência, de instrumento cada vez mais abrangedor para a correção da ilegalidade e do abuso que violem estes direitos de geração moderna, de concepção contemporânea, de titularidade indeterminada e de legitimidade que rompe com as correntes tradicionais que deram origem a outros direitos.”
A evolução do uso do mandado de segurança para a proteção de interesses difusos certamente atenderá aos desígnios da nossa Constituição. Decorrerão questões outras difíceis e controversas, especialmente de ordem processual. Muitas delas já são enfrentadas hoje com a ação popular, a exemplo da competência e da aplicação das regras de processo civil sobre conexão, continência, litispendência e competência (no caso de múltiplas impetrações). Ou ainda questões de legitimidade, novas e difíceis para a interpretação de qualquer ação protetora de direitos difusos, como as feições desta substituição processual prevista na lei, na afirmativa positiva de que havendo várias pessoas titulares, ainda que indetermináveis, qualquer delas poderá requerer o mandado de segurança.
V – Conclusão
Do estudo de qualquer tema, cabe explicar, classificar e provocar a reflexão de uma comunidade unida pela mesma predileção de tema ou pela mesma necessidade. Só assim se faz, a partir de uma ideia, de um texto, de um discurso, a contribuição para a evolução da ciência. Assim se deve tratar esta garantia tão poderosa que é o mandado de segurança, integrada na vastidão que envolve a aplicação dos direitos e garantias fundamentais.
A partir de sua breve história, de sua exclusividade brasileira e com seu desenho atual, o mandado de segurança oferece ainda muitas possibilidades, além das propostas de interpretação deste breve artigo, e tende a se firmar sempre e cada vez mais como um modelo de garantia eficiente, de remédio útil e acessível para conter ilegalidades e abusos do Estado. Espera-se que assim seja.
Enrico Francavilla
(Publicado em Atualidades Jurídicas Vol. 7 – Editora Saraiva, 2014)
[1]Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (16 de julho de 1934). Art. 113, n. 33. Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes.
[2] Surgiu neste momento histórico a chamada teoria brasileira do habeas corpus. O texto constitucional não limitava o remédio à proteção da liberdade de ir e vir e, portanto, tínhamos no Brasil um remédio de maior amplitude do que servia para a proteção de quaisquer violações a direitos, por parte de ato do Estado. De outro lado, apesar a amplitude do texto republicano, houve juristas que defenderam que o habeas corpus não deveria servir para outras proteções que não a liberdade de locomoção. Sobre este histórico, v. o meu Mandado de Segurança – Teoria e Prática, ed. Saraiva, 2013, pgs. 33/47.
[3] Mandado de Segurança – Teoria e Prática. pg. 41.
[4] Art. 5º.
LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
[5]Ver a Constituição Federal, art. 5º, incisos XVII a XXI; inciso LXX; art. 8º; art. 29, inciso XII; art. 37, inciso VI; art. 74, §2º; art. 174, §2º; art. 217, inciso I; art. 129, III, entre outras disposições.
[6] Cabe apenas uma ressalva em relação aos titulares do direito. Nesta primeira classificação, digo que o pressuposto para o mandado de segurança é o direito individual ou coletivo. Sem prejuízo, neste mesmo artigo, proponho uma interpretação da feição atual do mandado de segurança que o torna aplicável também para garantir direitos difusos, o que acrescentaria esta titularidade indeterminável a este pressuposto do mandado de segurança.
[7] Mandado de Segurança – Teoria e Prática. pgs. 52/53.
[8] Ver item 4.1.2, pg. 137 e segs.
[9] Mandado de Segurança – Teoria e Prática. Pg. 204 e segs.
[10] A hipótese é outra e não a do art. 3º da lei n. 12.016/2009, que trata apenas de direitos em circunstâncias e condições idênticas e de titulares determináveis. Este também é um caso de substituição processual, mas que não se confunde com a impetração difusa.
Art. 3o O titular de direito líquido e certo decorrente de direito, em condições idênticas, de terceiro poderá impetrar mandado de segurança a favor do direito originário, se o seu titular não o fizer, no prazo de 30 (trinta) dias, quando notificado judicialmente.
Parágrafo único. O exercício do direito previsto no caput deste artigo submete-se ao prazo fixado no art. 23 desta Lei, contado da notificação.
[11] Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 101. O mandado de segurança não substitui a ação popular.
[12] Constituição Federal. Art. 5º. LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
[13] A ação popular serve para a proteção dos direitos difusos já bem característicos que são os mencionados no rol da Constituição Federal e no da lei n. 4717/1965. A ação popular os protege e legitima qualquer cidadão para a propositura, ainda que não seja ele o titular dos direitos difusos, ou seja, ainda que não seja ele ligado por circunstâncias de fato aos demais titulares indetermináveis, se tomado o conceito de direitos difusos desenvolvido nesta obra. É norma de legitimidade, que caracteriza a amplitude da ação popular e continua autorizando a interpretação feita sobre a súmula n. 101 do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que teria a finalidade de declarar incabível a impetração de mandado de segurança para proteção de direitos difusos.
[14] Paulo Bonavides aponta quatro gerações de direitos fundamentais e insere na terceira geração os direitos ao meio ambiente, à paz, à comunicação e à propriedade, alguns entre os exemplos citados para caracterizar os direitos difusos: Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo dou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.
O mesmo autor identifica momentos relevantes para a geração dos direitos indigitados, na segunda metade do século passado: O direito ao desenvolvimento foi o tema de uma aula de E. Mbaya inaugurando os Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em 1972. Em 1977 a Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, apoiada na contribuição daquele professor universitário, formalizou, mediante resolução, o reconhecimento do sobredito direito. Durante a 36ª reunião daquela Comissão em 1980, foi ele incluído na Resolução Final do órgão.
Curso de Direito Constitucional. Malheiros Editores, 8ª edição – São Paulo, 1999 – pg. 523.